Chorando no banho de floresta

No fim de maio eu visitei Troldeskoven, a “Troll Forest” em Tisvilde, na Dinamarca. Amo esse lugar e tenho a alegria de já contar inúmeras caminhadas por suas trilhas, que nunca desapontaram nem em beleza e nem em inspiração a reflexões. 

 

Troldeskoven está na parte oeste de Tisvilde Hegn, que se estende de Tisvildeleje ao longo da costa até a plantação de Asserbo. As árvores mais antigas datam dos últimos anos do século XVIII, e acredita-se que suas formas estranhas sejam devidas a uma combinação da ação do vento e a ataques de larvas da “minhoca de pinheiros”.

 

Ver essas árvores de troncos torcidos traduziu em imagens o que vinha refletindo nesses dias sobre os caminhos da nossa alma, o desenvolvimento da nossa psique e identidade. Lembrei de Carl Rogers quando falou sobre a natureza humana, como somos motivados em nossa essência em direção ao crescimento. Segui a trilha desse pensamento: o tronco como modelo de registro, como retrato. 

 

Eu olho uma árvore e vejo um milagre. Quem me conhece sabe que a semente é um tema que me fascina e inspira a criações artísticas*. A semente como invólucro de força vital pura, carrega em si, em sua presença, o passado e futuro; memória e esperança. Uma semente tem o único intuito de realizar-se e pode esperar por anos pelo momento mais propício pra brotar. Espera pelo encontro da provisão do sol com o acolhimento do solo, o casamento da ideia com a intuição, masculino e feminino em equilíbrio. 

 

Da força vital nasce um broto que traz como herança, a vontade de realizar a promessa que fez ainda no silêncio do ventre escuro da semente. E a vontade finca suas raízes na mais pura fé naquele lugar onde a semente se abriu.

 

E assim, um dia o broto será chamado de árvore e terá histórias pra contar: a história do primeiro passarinho que fez dela um púlpito, histórias das mordidas de rena, das larvas de minhoca, do clarão que se abriu no céu quando uma árvore vizinha caiu ao seu lado.

 

Todos os dias a árvore adapta sua força inata de cumprir-se aos moldes do ambiente onde vive. Todos os dias tudo que traz vida em si, adapta sua força interna ao mundo externo. E assim crescemos constantemente no meio onde brotamos: com o meio, graças a ele e, apesar dele. 

 

Crescemos com coisas que aceleram ou retardam o desenvolvimento. Coisas que causam fissuras e coisas que fazem a casca engrossar. Coisas que estavam no caminho e provocaram um desvio pra um lado, pra outro. Curvas no caule. 

 

Eu caminhava com esse mantra: Curvas no caule. Curvas no caule. 

 

E agora é hora de eu revelar que nessa caminhada eu carregava uma dor. Uma ferida antiga sangrava sob uma casca arrancada. Ferida aberta, velha e fresca. Lá e cá. 

 

Curvas no caule. 

 

Subi uma escada que surgiu na trilha. Sem esperar nada, subia com meu mantra, pausando pra olhar bichinhos e ouvir o vento nas folhas. No topo, a trilha continuava e, de repente, uma enorme árvore caída. Uma Bétula atravessada no caminho.

 

A bétula caída me pegou tão de surpresa que parei; precisei fechar os olhos e voltar um pouco pra me reencontrar com a árvore mais bem preparada. Eu me vi na árvore caída, eu senti a terra. Aquela bétula me fez parar porque era chegada a minha hora de tocar minhas próprias curvas e fissuras. Eu vinha segurando o choro, vinha desviando de arestas e besouros, separando minha solidão da minha solitude, mas era chegada a hora de sentir tudo. 

 

Me sentei no tronco branco da árvore caída. À minha direita o ponto de quebradura da Bétula, bem acima da raiz, e à minha esquerda a extensa copa, esparramada no chão. E em volta, uma floresta inteira. Soube intuitivamente qual era o trabalho que havia ali pra eu fazer e pegando as feridas da Bétula emprestado, coloquei nelas as minhas próprias dores e ali mesmo, as acariciei. Percorri todo o caule, olhei lá dentro do escuro, toquei a seiva endurecida. Contornei galhos quebrados, conversei com nós, confortei ramos.

 

Em meio a esse momento íntimo e terapêutico, eu encontrei uma máscara no chão. De um pedaço de casca fez-se uma máscara. Achei isso tão simbólico, tão unificador! Através do olhar pelos olhos da máscara de bétula veio a confirmação de que eu me revi, me revivi. A máscara trouxe a oportunidade de despedir-me daquela experiência. Ao tirá-la agradeci e segui a trilha. 

 

Não demorou e recebi uma mensagem do meu marido pelo celular. Ele e nossas filhas estavam voltando pro carro, ele achava que ia chover. Eu já estava na chuva e apertei o passo pra encontrar minha família. Por fora igualzinho a que entrou na floresta, mas por dentro… cito Heráclito de Éfeso: 

 

 

“Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio… pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!”

 

Tayama Ramos da Silva Nielsen, Maio, 2024

 

*exemplos de trabalhos de arte meus, inspirados em sementes e plantas aqui